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In Memoriam - João Batista Libanio
In Memoriam - João Batista Libanio**
Uma das principais autoridades em filosofia no século XX, deixa uma obra densa, exemplo raro de dedicação ao trabalho intelectual.
Nascia em Ouro Preto, no dia 24 de agosto de 1921, o Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz. Faleceu no dia 23 de maio de 2002. Esta relativa longa vida foi principalmente dedicada ao apostolado intelectual na Companhia de Jesus. Filósofo de enorme erudição, de profundidade reflexiva e especulativa, ao lado de clareza didática nos cursos que ministrava e de densa formulação nos escritos.
Bem cedo despertou-se para a vida intelectual. Seu pai foi professor catedrático de Mineralogia na Escola Nacional de Minas e Metalurgia, e seu avô, homem de vasta cultura literária e filosófica, introduziu-o bem cedo no mundo da leitura.
Na Companhia de Jesus, onde entrou bem jovem, conheceu dois grandes mestres no início de seus estudos filosóficos: O eminente físico Francisco Xavier Roser e o humanista Eduardo Magalhães Lustosa. Na Europa, cursou teologia e doutorou-se em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.
Embora naqueles idos a Universidade não primasse por nenhuma originalidade e ousadia de pensamento, carregava, no entanto, uma história plurissecular que serviu de marco para o jovem estudante ouro-pretano.
Na Europa, teve ocasião de entrar em contato com luminares intelectuais da França e da Alemanha, através de visitas breves e, especialmente, leituras. Entre esses pensadores, estava Teilhard de Chardin, que apenas era acessível em poucos artigos publicados, já que suas obras estavam sendo retidas nas malhas da censura eclesiástica então rigorosa.
Outros autores frequentaram a leitura de Henrique Vaz, tais como Sartre, Fessard, Mounier, Maritan, de Lubac etc. Já tinha sido introduzido no Brasil no pensamento tomista renovado por meio da leitura atenta e profunda da obra de Joseph Maréchal. Sua tese doutoral, escrita em latim, intitulou-se Sobre a contemplação e a dialética nos diálogos de Platão, na qual defendeu o caráter profundamente intelectualista da contemplação platônica.
De volta ao Brasil, dedicou-se ao ensino da filosofia na Faculdade de Filosofia dos Jesuítas, em Nova Friburgo. Uma vida quase monacal possibilitou-lhe longos anos de estudos, de leitura, de aprofundamento. Mergulhou nos autores modernos: Descartes, Espinoza, Hegel e Marx. Como professor de filosofia da natureza, então chamada de cosmologia, enveredou-se também pelos campos dos físicos, filósofos e epistemólogos.
Na década de 60, o Brasil se inflamava com grupos jovens, atraídos pelo marxismo, na busca generosa de uma saída para um país dominado por uma elite cega, exploradora e reacionária. Instigado por esses jovens, Pe. Vaz elaborou artigos de extrema lucidez sobre a Consciência Histórica, sobre o Marxismo, a Mensagem Social do Papa João XXIII, que abria a Igreja a um sopro inovador no campo social.
Esses artigos, reunidos no livro Ontologia e história, foram luminosos para aquela geração e serviram para um confronto crítico e transparente entre a fé cristã e as propostas marxistas. Esta obra de tanto valor, que desaparecera do público - em parte, devido aos anos escuros da repressão - foi reeditada ano passado pela Edições Loyola.
Contingências da Igreja e da Ordem levaram-no a abandonar o ensino na Faculdade dos Jesuítas, onde se tinha transformado numa pessoa de referência para estudantes de vários lugares do país em busca de orientação. Transferiu-se para Belo Horizonte pouco antes do golpe militar de 1964.
Sua participação como redator do texto-base da Ação Popular, pensada, num primeiro momento, como vanguarda cristã na luta política, custou-lhe um inquérito Policial Militar e subseqüente processo, que acabou sendo arquivado por falta de matéria. Os rumos posteriores da Ação Popular, que se enveredara por uma linha marxista-leninista, já não vinham de sua orientação. Esta se mantivera na mais lídima fidelidade aos princípios cristãos.
Em Belo Horizonte, iniciou-se outro capítulo de sua vida intelectual. Contratado sem mais pelo destemido Diretor da Faculdade de Filosofia da UFMG, Arthur Versiani Velloso, respeitado pelos militares, assume cursos especializados e detalhados sobre Hegel. Tais cursos tornaram-se marcos miliares na Faculdade de Filosofia daquela Universidade.
Nos últimos anos, a obra filosófica de Pe. Vaz consolidou-se ainda mais. Publicou duas grandes obras fundamentais sobre Antropologia e Ética. Seguindo seu método típico, desenvolveu amplíssimo percurso histórico, seguido de uma reflexão sistemática.
Na Antropologia, descreve em profundidade a concepção clássica do homem desde a cultura arcaica grega até a antropologia neoplatônica, passando pelas filosofias pré-socráticas, socrática, platônica, aristotélica e helenística. A concepção cristã-medieval, tanto nas suas fontes bíblicas como patrísticas, precede à concepção moderna e contemporânea para terminar numa análise mais metódica do objeto e da estrutura do ser humano. Obra de um fôlego impressionante pela erudição e penetração especulativa. Como se não bastasse, um segundo volume estuda as categorias da objetividade, da intersubjetividade, da Transcendência, rematando seu estudo antropológico concernente às duas categorias da realização e da pessoa.
Obra de envergadura semelhante foi feita com a Ética, começando por detido estudo sobre o Ethos, da Ética antiga até os destinos da Ética pós-kantiana dos nossos dias.
Nos últimos artigos, Pe. Vaz empenhara-se numa reflexão crítica a respeito da modernidade. Via-a sob um olhar diferenciado. Nunca se deixou encantar por essa sereia que arrasta atrás de si tantos seguidores. Percebia com clarividência a irreversibilidade do desaparecimento da imagem antiga do mundo, a emergência da subjetividade, o império de uma razão autônoma com todas as suas riquezas.
Denunciou também os riscos gigantescos que a modernidade tem trazido por causa da sua ruptura com a Transcendência. Nas pegadas da Encíclica de João Paulo II, Fides et ratio, escreve um dos artigos mais esplendorosos, estudando o itinerário da razão ao longo da história. A sua tese criativa e Construtiva orienta-se na direção de um sadio diálogo entre ambas, superando o mútuo estranhamento.
Rubens Godoy Sampaio, em dissertação de mestrado sobre a obra de Pe. Vaz, não hesita em apontar o tema da transcendência como a abóbada do seu sistema filosófico. Para ele, convergem os diversos temas trabalhados pelo filósofo ouro-pretano. É o fundamento do mundo, do sujeito, da história, do sentido da história, da comunidade ética, do ethos.
A matriz, que lhe permite articular a história com a Transcendência e atribuir ao ser humano um valor infinito, é o mistério da Encarnação. Embora permanecendo no campo da filosofia, H. Vaz manteve-se firme e fiel à sua visão cristã, que lhe informou o pensar. Aí está uma obra, mina riquíssima, a ser explorada pelas gerações que se seguirão.
** O texto acima foi publicado no Suplemento Literário da Secretaria de Cultura do Governo de Minas Gerais em julho de 2002. O Padre João Batista Libanio é teólogo e autor de Introdução à vida intelectual: A arte de formar-se, Edições Loyola, 2001.
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