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In Memoriam - João A. Mac Dowell
In Memoriam - João A. Mac Dowell**
Padre Henrique Cláudio de Lima Vaz SJ (1921 - 2002)
Henrique Cláudio de Lima Vaz nasceu em Ouro Preto em 24 de agosto de 1921, filho de Theodoro Amálio da Fonseca Vaz e de Emília Josephine de Lima Vaz. Quando ainda era criança sua família transferiu-se para Belo Horizonte, onde cursou o Colégio Arnaldo dos Padres do Verbo Divino. Em 1938, aos 16 anos, concluídos os estudos secundários, entrou no Noviciado da Companhia de Jesus em Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro, período de iniciação na vida religiosa segundo a espiritualidade de S. Inácio de Loiola. Aí no Colégio Anchieta, onde funcionava então a Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, fez também estudos de humanidades, ciências e filosofia. Marcaram-no profundamente dois grandes professores jesuítas, o físico Francisco Xavier Roser e o filósofo e jurista Eduardo de Magalhães Lustosa. Tendo terminado brilhantemente o curso de Filosofia, foi enviado a Roma em 1945, para estudar Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana. Ordenado sacerdote aos 15 de julho de 1948, foi completar a sua formação religiosa em Gandia na Espanha, depois de alcançar a licença em Teologia. Voltando a Roma, obteve em 1953 o doutorado em Filosofia na mesma Universidade Gregoriana com uma tese sobre Platão.
Inicia imediatamente a missão apostólica de toda a sua vida como formador e professor dos jovens jesuítas na Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, primeiro em Nova Friburgo, até 1963, e depois de uma ausência de nove anos, no Rio de Janeiro, desde 1974, e em Belo Horizonte, a partir de 1982. Lecionou também na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais de 1964 a 1986, tendo recebido no ano passado o título de Professor Emérito desta Universidade, como preito de homenagem à excepcional qualidade de sua atuação acadêmica e de sua figura humana. Nestes quase 50 anos de magistério filosófico universitário, de 1953 a 2002, num ritmo de vida extremamente disciplinado e austero, dedicou-se incansavelmente à investigação e produção científica no campo da filosofia, e, mais ainda, aos seus cursos e à orientação de tantos alunos e alunas na busca da verdade e do sentido da vida. Suas exposições preparadas com esmero e desenvolvidas com clareza e brilho inigualáveis arrebatavam a atenção e interesse dos assistentes, cativados também por sua disponibilidade a toda prova e pela simplicidade de seu trato. Assim, através de seus cursos, conferências e escritos, formou uma legião de verdadeiros discípulos, tanto entre os jesuítas como entre os estudantes da UFMG e de outras Universidades, profundamente ligados ao mestre pelo pensamento e pelo afeto, muitos dos quais ocupam hoje um lugar de destaque no meio acadêmico brasileiro.
Sua irradiação na vida intelectual e mesmo política e social do país ultrapassou, porém, de muito o âmbito da escola. Foi o mentor da Juventude Universitária Católica (JUC) nos anos agitados que antecederam o golpe militar de 1964, iluminando o horizonte teórico de um autêntico compromisso cristão com a justiça e a transformação da sociedade. Radicado na tradição filosófico-teológico-espiritual cristã, foi um profundo conhecedor de S. Agostinho e de S. Tomás de Aquino, bem como da filosofia grega de Platão e Aristóteles. Demonstrou, ao mesmo tempo, grande abertura para o pensamento moderno, em diálogo permanente com seus mais ilustres representantes. Além de trabalhos importantes sobre Karl Marx e sobre o paleantropólogo e pensador jesuíta Teilhard de Chardin, dedicou-se especialmente ao estudo da obra filosófica de Hegel, do qual se tornou um dos maiores especialistas. Suas publicações compreendem uma dezena de livros e várias centenas de artigos e recensões de caráter predominantemente filosófico. Destacam-se os dois volumes da Antropologia Filosófica e os sete volumes dos Escritos de Filosofia, que incluem a sua Ética Filosófica.
Dotado de prodigiosa erudição, seus vastos interesses culturais estenderam-se muito além do campo da filosofia, abrangendo a teologia, história e literatura ocidentais, as ciências humanas e naturais, numa visão ampla de toda a problemática contemporânea. Apesar do caráter metodologicamente rigoroso de seus escritos, que não cedem às seduções e modismos de uma atualidade superficial, nem no conteúdo nem na linguagem, orientou sua reflexão para a análise da realidade sociocultural contemporânea, com profundas considerações sobre a crise da modernidade sob os aspectos filosóficos, éticos, políticos e religiosos. Deste modo, com notável objetividade e sem prejuízo de sua típica modéstia e cordialidade, tomou posição clara no debate atual a respeito do sentido transcendente da existência humana e dos rumos de nossa civilização. Sua valorização das potencialidades da razão e das conquistas da modernidade, não o impediu de apontar com lucidez crescente os impasses resultantes do abandono pela metafísica moderna da subjetividade do paradigma teocêntrico, próprio do humanismo cristão. A esta inversão antropocêntrica do dinamismo do espírito atribuía o niilismo do pensar pós-metafísico e da cultura pós-moderna. Na sua visão, é do congraçamento do movimento ascensional da razão filosófica (anábasis), tipificado pelo pensamento grego, com o movimento descendente da Palavra de Deus (katábasis), refletido na tradição bíblico-cristã, que surge a verdade do homem. Assim como lamentava a deriva agnóstica ou simplesmente atéia do pensamento acadêmico, bem como a dissolução dos valores morais veiculada pela cultura contemporânea, rejeitava as soluções fáceis do fideísmo dogmático, da praxis voluntarística, da evasão mística ou simplesmente do sentimento religioso puramente subjetivo. Saudou por isso com entusiasmo a Carta Apostólica "Fides et ratio" de João Paulo II, lendo nela a confirmação de seu programa de reconciliar fé e razão, para além dos mal-entendidos dos últimos séculos, através de uma reprodução original da síntese filosófico-teológica realizada por Tomás de Aquino no século XIII. Sua última obra, saída nas vésperas de sua morte com o título "Raízes da modernidade", trata justamente do assunto que o vinha preocupando cada vez mais, i.e. a necessidade de redescobrir os fundamentos metafísicos da existência humana, pessoal e social, à luz da tradição cristã. Só assim será possível, pensava Pe. Vaz, desenvolver uma Ética universal, à altura da dignidade da pessoa humana e adequada às exigências da civilização planetária que se anuncia no século XXI.
Por todos estes títulos, ele foi certamente na sua geração o representante mais destacado e o interlocutor mais respeitado do pensamento de inspiração cristã nos meios intelectuais e universitários do Brasil. Seu nome é presença obrigatória e sua obra objeto de análise elogiosa nas publicações nacionais e internacionais dedicadas à filosofia do Brasil. De fato, Pe. Vaz é considerado um dos principais filósofos brasileiros da atualidade. No livro recente Conversa com filósofos brasileiros, Ed. 34, São Paulo, 2000, não só é um dos 16 entrevistados, como também é apontado por vários deles como uma das três ou quatro figuras mais notáveis no cenário filosófico nacional. Por ocasião do seu 80º aniversário, no ano passado, a Faculdade de Filosofia da Companhia de Jesus, na tentativa de resgatar um pouco da dívida imensa que tem para com ele, organizou uma Semana Filosófica em sua homenagem, da qual participaram vários dos mais distinguidos professores de filosofia das Universidades brasileiras.
Entretanto, mais do que um puro intelectual, o Pe. Vaz foi um homem de fé, um sacerdote, animado pelo amor a Cristo e a seus irmãos, empenhado no diálogo com a cultura contemporânea, para revelar aos homens e mulheres de nosso tempo, através do discurso racional, o sentido autêntico da existência humana, à luz da verdade eterna, que é Cristo. Por isso mesmo, ao lado de sua atividade filosófica, nunca deixou de dedicar-se ao serviço pastoral do povo de Deus, especialmente junto aos mais simples. Entre outros ministérios, celebrou regularmente nos últimos 20 anos a Eucaristia dominical na Paróquia de Cristo Operário, no Bairro Planalto, periferia de Belo Horizonte. Seus companheiros jesuítas sempre vislumbraram nele o exemplo de alguém, que cumpre, com admirável fidelidade e perseverança, inteligência e criatividade, a missão de serviço, assumida na fé, através das mediações institucionais da Igreja Católica. Dom Luciano Mendes de Almeida, nas exéquias do Pe. Vaz, resumia nestas palavras o seu testemunho: "Conjugava a exímia sabedoria e virtude com a simplicidade e despretensão. No Brasil, será difícil encontrar tão cedo um mestre de tão consumada ciência e santidade".
Levando até o fim o cumprimento de sua missão, Pe. Vaz, ainda iniciou em março último, já aos 80 anos, o seu curso regular de Ética. Teve, porém, de interrompê-lo, para submeter-se a uma cirurgia de próstata, da qual resultou finalmente, após uma série de complicações pós-operatórias, o seu falecimento (23.05.02). Uma multidão de mais de 500 pessoas compareceu à missa de corpo presente, celebrada no auditório do Instituto Santo Inácio. Nesta ocasião, o cardeal arcebispo de Belo Horizonte, Dom Serafim Fernandes de Araújo, que presidiu a celebração, afirmou, expressando o sentimento de todos os presentes: "Estamos recebendo hoje sua última lição. Seu silêncio permanece como uma lição de fé. É o momento de agradecer a Deus pelo que ele representou para o Brasil e para o mundo.
** João A. Mac Dowell (Texto de 2002)
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